Virava para lá e para cá da
cama como se estivesse tendo um pesadelo. A chuva e os raios caíam lá fora. De
repente acordou assustada. O coração batia forte. Era madrugada. Foi tomar um
copo d’água e no caminho à cozinha, nas luzes dos relâmpagos via o rosto dele.
A última vez que viu Martino
foi há mais de três anos num aeroporto. Com pressa, se esbarraram e mal se
falaram.
Há anos uma adolescente havia
se apaixonado por aquele garoto de sorriso simpático, não costumava sorrir,
mas, quando o fazia era lindo.
A vida de tão engraçada ou o
destino brincalhão separaram aqueles dois jovens, Martino e Kate.
A chuva continuou no dia
seguinte, porém, mesmo lendo um bom livro ela não conseguia esquecer o
pesadelo. Na verdade, não teria sido bem um pesadelo, era um sonho estranho com
uma discussão quando Martino estava na casa dela e ela tentava mostrar a ele o
quanto ela o tinha amado quando eram jovens e que agora nem amigos eram.
Naquele momento de sua vida,
Kate já tinha achado alguém para a vida inteira como Martino não quis fazer.
Ela namorava firme enquanto ele já tinha passado por três casamentos, tantos
namoros e nem um “eu te amo” conseguia dizer à atual mulher.
A única coisa que Kate queria
era saber o que ele tinha achado dos versos que ela escreveu a ele, ela só
esperava uma resposta. Versos em tantos poemas que escreveu e, por isso, eram
versos dela e dele. Ela queria apenas que Martino aceitasse aqueles versos em
paz, pois, ela ficaria onde estivesse, preferindo continuar distante apenas
gostando dele, porque esse sentimento tão puro a acalmava, acolhia sua alma e a
ajudava a viver.
Aqueles eram versos de amor e
amizade. Um amor que ela não esperava mais ter dele, contudo, uma amizade
apenas.
A adolescente que sonhava em morar
fora, casar com Martino e ter filhos havia ficado para trás. Agora, era uma
mulher independente, comprometida com o trabalho e com as viagens que as
relações internacionais exigiam dela. Talvez Martino apenas fosse seu amor
imperfeito e mais raro. Tão raro que, na adolescência Kate procurou tanto por
alguém assim em suas aventuras amorosas, sendo que na verdade ele era o único
que a levava a fazer tantas loucuras, pois, era tão difícil encontra-lo. Ela
nunca sabia onde ele estava, porém, ela não se importava. Apenas tinha colocado
sua vida na palma das mãos dele. E apesar de tudo isso, só queria que ele a
segurasse perto de seu coração e desse todo o seu amor a ela.
De repente, o telefone tocou e
ao atender, que surpresa, era Martino. Kate ficou simplesmente sem o que dizer.
Por que estaria ligando? Há anos tinha passado seu número a ele e ele nunca
ligou, agora, de repente parecia ter mudado de ideia. Na verdade, precisava de
ajuda.
Uma vez ela escreveu, pela
internet, que se ele precisasse de ajuda ela estaria sempre ali, pronta a
ajuda-lo. E aquele era o momento. Ele tinha acabado de perder a mãe, estava
desnorteado, sem saber o que fazer, para onde ir e sem ter alguém para
desabafar, alguém que realmente o amasse e tivesse um ombro amigo de verdade.
Como Martino morava longe,
depois de dois dias estava na casa de Kate. Era janeiro e desde o início do mês
ela estava de férias. Dali a alguns dias iria fugir da muvuca de verão das
praias e ia para o interior onde encontraria sossego, cachoeiras e rios. Já
estava planejando a viagem quando Martino tocou a campainha e Kate atendeu,
indo diretamente ao portão recebe-lo.
- Pegou um taxi do aeroporto
até aqui?
-Sim, achei o modo mais
prático. Ia alugar um carro, porém, não vi real necessidade.
-É verdade, não há necessidade
mesmo, já que tenho carro e posso te levar aonde quiser.
-Obrigado.
Martino ouviu o latido dos
cachorros de Kate e vou agradá-los.
-Sei que sempre gostou de
bichos, não? – perguntou ela.
-Sim, na infância tive vários.
-É, eu sei. Eu também. Hoje
tenho apenas cachorros e gatos.
Entraram, ela mostrou o quarto
dela onde ele poderia dormir. Ela dormiria no sofá do escritório que era bem
grande e confortável. Ela mostrou onde ele poderia colocar suas coisas e pediu
a ele que ficasse a vontade.
Depois de arrumar suas coisas,
Kate ofereceu a ele algo para beber, já que o calor era intenso. Fez mate
gelado, uma iguaria que ele não conhecia por ser do norte da Itália.
-Está uma delícia. -disse ele
-É chá mate gelado. É costume
aqui. No sul tomam esse chá quente sem ser tostado e no centro-oeste tomam a
mesma coisa, mas frio. No Uruguai é muito comum também, quente como no sul. Na
maioria dos outros Estados brasileiros tomam assim, gelado.
-Tantas vezes que vim para
esse país e isso ainda não conhecia...
-Pois é, posso te mostrar
muito de nossa culinária também.
E assim continuaram
conversando por um bom tempo, quando ele se lembrou de sua mãe e acabou
desabafando tudo a Kate, tendo ali um abraço apertado e um ombro amigo.
-Mesmo sem termos conversado
muito em todos esses anos, fico feliz que tenha confiado em mim para isso. –
disse ela.
-Todas as mensagens por
internet, as cartas que me entregou sempre diziam isso e, nesse momento, não
sei, senti que estava sozinho em uma multidão. E você sempre escreveu que eu
nunca estaria sozinho na multidão, pois, mesmo longe você estaria aqui pronta a
me ajudar.
-Com certeza. Sempre.
-Você me entregou um livro de
poemas em inglês. Você publicou lá fora?
-Sim. Na verdade, publiquei
aqui e uma editora de Londres se interessou e publicou por lá também. É um
passatempo que tenho e que me rendeu alguns trocados a mais.
-Entendo. Sabe que me
identifiquei muito com os poemas?
-Eles sempre tiveram um grande
amor e uma grande amizade de inspiração...Mudando de assunto, já está escuro,
você deve estar com fome, não?
-Sim, agora estou. Posso te
ajudar a preparar algo.
-Obrigada! Vamos até a cozinha
então.
No dia seguinte, um dia lindo
saíram para irem ao clube do qual Kate era sócia e se divertiram bastante. Ao
chegarem, mesmo escurecendo aproveitaram também a piscina da casa de Kate,
contudo, numa atmosfera mais intimista que fez com que os dois se aproximassem
ainda mais.
Em todas as refeições Martino
ajudava Kate a preparar e a arrumar a cozinha.
-Sabia que você cozinhava bem,
mas não sabia que tão bem – Kate comentou.
Martino simplesmente sorriu. E
disse:
-Não me sinto bem dormindo em
sua cama e você naquele sofá...
-Fique tranquilo, muitas vezes
adormeço naquele sofá assistindo a algum filme na tela no computador.
Mais um dia amanheceu e no
café da manhã planejaram o dia. Foram passear pela cidade e depois andar de
bicicleta pelo bairro onde Kate morava. Ela tinha uma bicicleta mais velha e
uma mais nova que tinha acabado de trocar. Passearam pelo parque municipal que
tinha perto onde assistiram ao nascer do sol. Um momento cheio de poesia e
muito intimista que fez quase os dois se beijarem.
Voltaram para casa, tomaram um
banho, comeram alguma coisa. Já tinha escurecido, passava das 9h da noite.
-Você toca instrumentos? –
perguntou Martino olhando o piano, o saxofone e o violão de Kate.
-Quando eu era mais jovem
estudei muito música. Hoje ainda toco para não perder o costume e nem a
habilidade. Você toca também, não?
-Sim, quando criança também
estudei música. Posso pegar o violão?
-Claro, fique à vontade!
Nesse momento começaram a
ouvir trovões fortes e antes que Martino começasse a tocar a energia acabou e
começou um temporal muito forte.
-Fique tranquilo, são
tempestades comuns no verão. Vou acender as velas.
Kate trouxe várias velas e
começou a acendê-las, enquanto Martino ainda estava sentado no sofá e com o
violão nos braços.
-Você se importa de tocar a
luz de velas? – perguntou ela.
-Não, vai ser divertido!
Os dois cantaram junto, se
divertiram e assim o tempo foi passando, passando... Até que Kate ficou no
outro sofá só olhando Martino tocar baladas mais calmas e ela acabou
adormecendo no sofá. Martino percebeu e parou com a música. Apagou todas as
velas, deixando apenas uma. Pegou Kate
no colo e colocou-a na cama. Ao deixa-la, ela sonolenta, pediu para que ele
ficasse por perto. Ele apagou a última vela e deitou ao lado dela. E assim
dormiram.
No dia seguinte Kate acordou
já com o café posto na mesa e então não planejaram nada para aquele dia que
amanheceu chuvoso. Ficaram vendo fotos, ouvindo uma boa música e à noite
assistiram a um bom filme na TV. Os dois sentados no sofá foram vagarosamente
se aproximando e no final do filme se beijaram.
Kate fez questão que Martino
continuasse dormindo na cama dela e ela iria para o sofá. De madrugada, ele
apareceu na porta de onde Kate dormia:
-Há algum problema, Martino?
-Não, apenas insônia. Posso
pegar algum de seus escritos para ler? Você também publicou um romance, não
foi?
-Sim. Pode pegar está aqui na
estante.
-Obrigado.
Martino pegou para ler o
romance que Kate havia escrito e foi para o quarto.
Acabaram por,
coincidentemente, acordarem juntos e juntos também prepararam o café. Martino
se mostrava outra pessoa. Não parecia mais aquele cara que chegou à casa de
Kate triste por ter perdido a mãe. Havia agora brilho nos seus olhos, vida em
seu sorriso.
-Puxa, Martino, você já é
outra pessoa desde quando chegou. Fico muito feliz com isso.
-Tudo graças a você, Kate.
-Eu só fiz o que uma
verdadeira amiga faria!
-Não sei se quero ser mais um
amigo... Você acabou mexendo demais comigo todos esses dias.
-Quando você pretende ir
embora?
-Por quê? Você está precisando
que eu vá embora?
-Não, mas é que viajo
amanhã... Estou de férias e quando você chegou já faltavam poucos dias para a
minha viagem. E com dias tão divertidos acabei me esquecendo... Mas, caso
queira, pode vir comigo.
-Aonde você vai?
-Vou para o interior tomar
banho de cachoeira e rio. E sei que você é bem ligado à natureza.
-Sim sou, e se você me
convida, irei sim.
-Muito bem. Então amanhã
sairemos cedo.
Na viagem, Martino pôde
conhecer mais o Brasil, coisas que ele não conhecia, comer comidas que também
não conhecia e entrar em um rio, algo que nunca tinha feito.
-Essas praias de rio são muito
lindas. – disse ele
-Sim, em épocas que as praias
de mar estão lotadas eu busco o sossego perto desses rios. E também das
cachoeiras.
-As cachoeiras também são
lindas demais. Um paraíso.
Os dois continuavam muito
próximos e curtiam algo que não era amizade e nem namoro. Apenas ficavam mais
próximos nos passeios, de mãos dadas, às vezes se beijavam.
Depois de uma semana voltaram
para a casa de Kate. Era final de tarde e estavam cansados. Fizeram apenas um
lanche, tomaram um banho e foram dormir.
No meio da madrugada um trovão
muito forte acorda Kate que com seu grito de suto acordou Martino. Ele correu
para a porta do quarto dela e perguntou:
-Está tudo bem?
-Está. Apenas levei um susto
muito grande com esse trovão que pareceu ter caído pertíssimo daqui.
Martino, então, entrou no
quarto e viu que o coração de Kate estava disparado.
-Tem certeza que está tudo
bem? – perguntou ele
-Sim, é que eu estava dormindo
muito profundo e, por isso, o susto foi muito grande.
-Acalme-se. Vou ficar aqui com
você até você se reestabelecer do susto.
Martino deitou-se ao lado dela
e ela apoiou sua cabeça em seu peito. Enquanto o coração dela ainda estava
disparado, o dele estava tranquilo, o que fez com ela fosse se acalmando
também, contudo, ao mesmo tempo, se aproximando mais e mais dele.
Depois de dormirem e acordarem
juntos, foram preparar e tomar o café.
-Martino, não tem problema
você ficar tantos dias longe de casa?
-Eu sou divorciado.
-Eu sei, você se separou três
vezes e tem os filhos dos três casamentos.
-Sim. Na verdade, meu primeiro
casamento não estava indo bem, ia me separar antes de ter filhos, quando soube
que ela estava grávida.
-Então, foi infeliz?
-Feliz pelos filhos que tive.
Namorei, me casei e me separei por mais
duas vezes. Acho que na verdade não queria ficar sozinho nesse mundo.
-Por isso os filhos?
-Também. Acho que também nunca
amei de verdade uma mulher. Com uma única exceção.
-Quem?
-Você, Kate.
-Agora que você descobriu
isso? Parabéns!
-Por quê?
-Martino, passei quase dez
anos da minha vida te amando e nunca tive retorno. Então, como você, também
namorei, só não casei. E agora estou conhecendo um cara que tem tudo a ver
comigo. Não estamos namorando nem nada, porém, achei a pessoa que me quer, com
quem talvez eu passe o resto de minha vida, não sei, mas, vou tentar. Eu já
tinha uma vida quando você chegou, sabe? De repente você vem do nada e surge
essa sua vontade de mudar tudo. Foi legal o que tivemos esses dias, contudo,
depois dessa noite me dei conta que por mais que eu tenha te amado no passado,
as coisas mudaram. Eu não sou mais aquela pessoa que queria casar com você e
ter filhos. Hoje eu tenho uma carreira e nem sei se quero casar ou ter filhos
ou adotar... Sei lá! Estou conhecendo esse cara, como te disse. A verdade é que
agora Martino, é que vou continuar te amando como jurei sempre amar, mas tenho
que seguir a minha vida, desejando o melhor pra você e estando aqui para o que
você precisar. Vou ser sua melhor amiga para sempre, esse posto eu te juro que ninguém
toma.
Martino suspirou e disse:
- Então só me resta fazer as
malas e partir. Agora entendi o porquê de você me perguntar se eu não tinha que
ir... Na verdade eu estava até pensando em voltar com minha ex-mulher, mesmo
nunca tendo conseguido dizer um eu te amo a ela.
-Escute, Martino. Isso é o
melhor que você tem a fazer. Seus filhos caçulas ainda são novos, mas, quando
eles crescerem vão ter a vida deles, assim como os mais velhos já tem. Amando
ou não a sua terceira ex-mulher, você terá uma companheira. E, ao mesmo tempo,
terá também uma mulher que mora longe de onde você mora e que vai sempre te
amar. A gente nunca daria certo junto. Como amigos é uma coisa, agora como
casal... Hoje vejo que iríamos viver brigando, pois, sei que tem hora que você
é muito chato! – e Kate riu.
-Eu sei... É difícil aceitar,
porém, sei que você tem razão. Você me conhece muito bem...
-Conheço...Nunca me esqueço o
primeiro balde de gelo que você jogou em mim... Num dia, num fim de tarde de
outono, você todo alegre e risonho. Quando te encontrei no dia seguinte de
manhã... Que balde de neve que levei com tanta indiferença! Como diz um ditado
por aqui, quem não te conhece que te compre! – e Kate riu de novo.
-O mais bonito de tudo isso,
Kate, é ver que mesmo sabendo dos meus maiores defeitos, de meu mau humor
matinal, de minhas manias, de certas coisas que me deixam irritado e acabo até
tratando não muito bem as pessoas, você me ama.
-Sim, pois, você me ensinou
que os seres humanos têm defeitos e que, como cantava o famoso vocalista Renato
Russo, é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã. E eu te amo. A
única coisa é que a vida nos deu outros rumos e hoje não dá mais, ou talvez,
nunca desse... Prefiro deixar tudo como está e te ter como meu melhor amigo,
aquele com quem eu possa contar também. E sei que nisso daremos certo. Você tem
um coração de ouro. Quantas vezes em todos esses anos eu não senti sua falta
como amigo...!
-Agora entendo o porquê de
você me escrever dizendo que queria só sentar e tomar um café comigo.
- Pois é...
-Então, amanhã eu parto.
-Não quero te expulsar de
minha casa, que ao contrário, sempre estará de portas abertas para você. O
problema é que logo voltarei a trabalhar, pois, minhas férias estão acabando.
-Eu sei. Eu também tenho que
partir, pois, uma vida me espera lá na Itália.
-É duro...Tudo que é bom não
dura pra sempre, dura pouco, contudo, por outro lado, não acaba cedo.
No dia seguinte, Martino
partiu. E eles juraram amizade eterna , selando um pacto de amizade como nunca
existiu.